Menos de um em cada dez alunos (9,75%) se autodeclara preto ou pardo nas 20 escolas com as maiores notas no Enem 2019 no país. Destas, uma é pública. É o que mostra um levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Uerj (Gemaa).
Apenas três colégios do ranking, todos particulares, têm ao menos 20% dos alunos que se declaram negros. E os negros são, de acordo com o IBGE, 56% da população brasileira. O estudo foi feito a partir de dados do Censo Escolar de 2020.
As escolas usadas como base do levantamento estão localizadas em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará Piauí e Paraná.
São elas: Colégio Catamarã Referência, Colégio Pirâmide, Colégio Vértice - Unidade II, Associação de Ensino de Boituva Escola, Objetivo Colégio Integrado, Colégio Orlando Garcia da Silveira, em São Paulo; Instituto Ellos de Educação, Colégio Bernoulli, Colégio Santo Antônio, Colégio Fibonacci, Colégio Bernoulli - Gonçalves Dias, Escola Ana de Melo Azevedo, Centro Educacional de Matipó, em Minas Gerais; Colégio São Bento, no Rio de Janeiro; Instituto Dom Barreto - Centro, no Piauí; Farias Brito Colégio de Aplicação, Ari de Sá Cavalcante, nas unidades Mario Mamede e Major Facundo, no Ceará; e o Colégio Estadual Legeado Bonito, no Paraná.
Um segundo levantamento, com recorte por estado, revelou que São Paulo tem, em média, 3,8% dos alunos autodeclarados pardos ou pretos nas dez escolas com maiores notas no Enem 2019. O estado com maior representatividade é Roraima, com 65,4%. No Rio, a média das escolas no top 10 é de 7,8% dos alunos declarados negros. Na Bahia, um dos estados com mais pessoas autodeclaradas pardas e pretas, apenas 21% se declaram negros.
— Naturalizamos o sistema educacional privado de alto desempenho como um “apartheid racial na educação”. Consideramos natural ter escolas completamente brancas, como se fosse apenas problema das pessoas negras se elas não tiverem como pagar para estudar naquela escola — diz o coordenador da pesquisa, o sociólogo Luiz Augusto Campos, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp).
Denúncia de racismo
Em 2020, o 3º ano do ensino médio do Colégio São Bento, tinha, de acordo com o levantamento, 55 alunos e apenas três negros. Um deles era João Pedro Manhães, hoje com 19 anos, morador da Vila da Penha, Zona Norte do Rio, estudante de Design de Produto na PUC-Rio. O rapaz conta que foi vítima de discriminação por um funcionário da escola.
Quando cursava o segundo ano, João decidiu usar tranças nagô, bem rentes ao couro cabeludo. Ele conta que o penteado é aspecto importante na expressividade de sua negritude.
— Um funcionário disse que na escola não podia esse corte, que se encaixava na regra que proibia “cabelo exótico”. Argumentei que a regra era racista. Ele queria que eu tirasse as tranças imediatamente no banheiro ou fosse embora — relata. — Ele procurou minha mãe, mas ela não tinha como me buscar, então me deixou ficar até o fim das aulas.
No dia seguinte, João, que estudava no São Bento com uma bolsa de estudos do Ismart, projeto voltado para jovens com potencial das escolas públicas, cortou a trança para não ter mais problemas.
— Com os meninos brancos com franjas gigantescas eles não falavam nada, só com os três alunos pretos do Ensino Médio — diz.
Ele lembra que, no fim do terceiro ano, viveu um outro episódio que o revoltou. Em 2020, já no esquema de ensino híbrido, ele diz que o mesmo funcionário tentou enfiar uma caneta dentro de seu cabelo, perguntando se caberia. À época, ele não se sentiu seguro para reclamar com a escola sobre a atitude do funcionário.
De acordo com o levantamento da Uerj, o Colégio São Bento tinha apenas 3% de alunos negros em 2020. Procurado pelo GLOBO, o Colégio São Bento afirmou que é uma instituição católica e tradicional, que zela pelos direitos humanos, e que “as regras de convivência descritas no nosso regimento são claras e valem para todos e entendemos que elas são necessárias para formar e educar, sem distinção, cada um dos alunos”.
Ações afirmativas são "cosméticas"
A Federação Nacional de Escolas Particulares diz, em nota, que defende e incentiva que ações afirmativas sejam feitas pelas 40 mil instituições particulares de ensino brasileiras, que atendem, aproximadamente, 15 milhões de alunos, sendo 9 milhões na educação básica. E argumenta que “a visão de a escola particular ser para filho de classes A e B não dialoga com a realidade, segundo o PNAD, de 40% das matrículas na escola privada serem das classes C, D e E”.
Na avaliação de Campos, as ações afirmativas implementadas até agora por muitas escolas privadas para garantir o acesso de pessoas negras e pobres são “cosméticas” e pouco significativas.
— É como se bastasse ter um aluno preto ou pardo, uma aula de história da África ou uma política de capacitação para argumentar que são inclusivos — afirma.
Para o mestre em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Sociais Diomario Silva, professor das redes pública e privada do Rio, as escolas particulares têm que promover a integração dos alunos negros na formação estudantil e deixar nítido que, independentemente de serem bolsistas ou não, todos estão ali para aprender.
— O levantamento da Uerj constata que a elite branca continua sendo dominante no país. Esta década está sendo marcada pela valorização do afrodescendente, mas até que ponto as escolas estão contribuindo, enquanto espaço de formação, para mudar o cenário? — destaca.
Superior elitizado
Na Escola Eleva, foram criados grupos compostos por famílias com filhos negros que ajudam o colégio a construir um espaço mais diverso. O estudo da Uerj aponta que os estudantes negros são apenas 1% da unidade de Botafogo, Zona Sul do Rio. O conglomerado educacional reúne 11 redes de escolas privadas no país.
A unidade afirma que “há prioridade para alunos negros no processo de admissão” e que, com os dados mais atualizados, o percentual pula para 5%. A assessoria de imprensa informa que, “se abrirem dez vagas, se tivermos dez brancos e dez negros para entrar no colégio, a escola dará preferência para a inclusão dos alunos negros”. Não há, no entanto, uma política de bolsas exclusivas para eles.
A escola possui um programa com 81 famílias, no Rio e Brasília, que recebem descontos parciais e até integrais nas mensalidades na qual os estudantes pretos e pardos são prioridades. Dos 81 atendidos, 59% declaram-se negros.
Em nota, o colégio diz que “foi constituído um Comitê de Diversidade, que promove um currículo de educação antirracista” e que faz uma “capacitação para equidade de gênero e racial entre lideranças, colaboradores e o corpo docente”.
Para Silva, a consequência da estrutura social apontada no levantamento é a exclusão de negros dos cursos mais concorridos no ensino superior:
— Em pedagogia, há mais alunos negros, mas será que foi mesmo a primeira opção de todos? Muitos queriam fazer engenharia ou medicina, mas precisam trabalhar (e os cursos são integrais). As excelências continuam cada vez mais elitizadas.
De acordo com o IBGE, só em 2019 as universidades tiveram mais alunos negros (50,3%) do que brancos. No entanto, carreiras mais concorridas e com maior remuneração têm percentual menor de pretos e pardos, como Medicina (39,9%), Engenharia (40%), Odontologia (38,7%) e Direito (43,8%).
Fonte: O Globo