Medidas de tolerância zero à venda de drogas falharam no parque Görlitzer Park, em Berlim
São 11h00 em mais um dia frio e nublado de Berlim. Vestindo uma jaqueta preta, John* se apoia em uma cerca de metal, na companhia de três amigos.
A alguns metros dali, crianças brincam em meio a balanços e animais, alheias ao que se passa ao seu redor. O jovem de Guiné Bissau, na África Ocidental, parece um pouco receoso. Um de seus colegas acabara de me acusar de gravá-lo com uma câmera escondida. Digo-lhe que pode me revistar, se assim desejar. E John aceita conversar.
"Não podemos trabalhar na Alemanha enquanto solicitamos asilo. Não há suporte de verdade [durante esse período]. Por exemplo, o governo oferece um vale para comprarmos comida somente nos mercados que escolhe, assim fica difícil viver. Temos de vender drogas para pagar as contas", diz à BBC News Brasil o rapaz, que chegou ao país há seis meses.
Estamos no Görlitzer Park, um parque no distrito de Kreuzberg, área em intensa gentrificação na capital alemã. O local, conhecido há décadas por seus inúmeros traficantes que vendem drogas a céu aberto e a qualquer hora, voltou às manchetes na última semana.
Com o fracasso de medidas de repressão, incluindo a proibição temporária da posse de maconha no local e a repressão policial ao tráfico, o administrador do parque, Cengiz Demirci, adotou uma abordagem diferente: marcou no chão "áreas designadas", onde vendedores de substâncias ilícitas e usuários deveriam realizar suas transações.
A medida pretende proteger os visitantes de intimidações e abordagens agressivas de traficantes. Mas causou polêmica, uma vez que o comércio de drogas é ilegal no país, com parte da opinião pública e algumas autoridades acusado o parque de, na prática, legalizar a venda de substâncias ilícitas e de se intrometer na atuação da polícia.
A repercussão levou o distrito de Friedrichshain-Kreuzberg, onde o Görlitzer Park está localizado, a rapidamente negar a existência de "zonas designadas para o tráfico" e dizer que "não legitima o comércio de drogas" nem concorda que a iniciativa seja "uma forma adequada de lidar com o problema".
Apesar de atribuir à polícia o combate ao crime, a autoridade local reconhece que "nem mesmo a política de zero tolerância" e operações policiais obtiveram sucesso no parque.
À BBC News Brasil, a polícia de Berlim informou que continuará atuando em Görlitzer Park e que diversas estruturas devem ser envolvidas para eliminar o problema, mas se recusou a avaliar "ações adotadas por outros atores".
A região do parque figura em uma lista de lugares considerados pela polícia berlinense como "áreas propensas a crimes" graves – como assaltos, roubos e venda de drogas. A polícia admite a existência de "diversos" casos de violência relacionados ao tráfico de drogas no local.
Na Alemanha, a posse, venda, cultivo e produção de drogas são ofensas criminais, podendo resultar em até cinco anos de prisão (com aumento para agravantes), segundo o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, agência da União Europeia voltada para o tema.
O uso em si não é mencionado como ofensa e os procuradores podem decidir não indiciar indivíduos pegos com pequenas quantidades de substâncias ilegais para consumo pessoal, a depender do tipo de droga e do histórico do suspeito. A maior parte dos Estados alemães define quantidades limites de posse de maconha (entre 6 e 15 gramas conforme a região), enquanto outros também o fazem para heroína, cocaína, anfetamina e MDMA/ecstasy. A maconha medicinal é permitida.
Uma alternativa viável?
Em meio à polêmica, há quem enxergue potencial na inciativa do Görlitzer Park.
"Demirci (o administrador do parque) está encarregado de controlar a situação para permitir que a população aproveite o parque sem ser incomodada. Ele tem que manter um mínimo de harmonia entre todos os usuários. Seu anúncio foi um pouco precipitado, mas como 'combatente solitário', ele quer vender suas ideias que, de outra forma, não são reconhecidas pelo público", explica Christine Kluge Haberkorn, da Akzept e.V., organização alemã pró-discriminalização das drogas.
Para Ruth Dreifuss, ex-presidente da Suíça e ex-ministra do Interior, posto no qual liderou a política de drogas daquele país por dez anos, a decisão de Demirci é pragmática e pode liberar parte do parque à população.
"Essa saída deve conter o mercado negro e impedir que se espalhe para outras áreas ou que desapareça na clandestinidade. O sigilo não significa mais controle, significa mais violência, produtos mais perigosos e um peso maior sobre bairros pobres", argumenta.
Por enquanto, os traficantes parecem não estar seguindo as limitações de espaço, mas John afirma que há uma relação de diálogo com Demirci. "Ele pede que a gente não fique no meio das ruas do parque. A gente respeita. Quando os administradores falam, os entendemos."
"Tal divisão espacial pode ser muito mais eficiente que um jogo permanente de 'gato e rato", afirma Dreifuss, atual presidente da Comissão Global sobre Políticas de Drogas, organização suíça que debate políticas públicas de drogas (antes liderada por Fernando Henrique Cardoso). "Pela minha experiência na Suíça, os traficantes aceitam limites se não forem constantemente assediados e precisarem procurar novos lugares. A violência e agitação muitas vezes diminuem."
Quem são os traficantes?
A recente atenção recebida pelo parque também levanta questões sobre a situação dos traficantes de Görlitzer Park e como integrá-los na sociedade alemã: parte considerável é composta por imigrantes em situação irregular ou aguardando uma resposta para seus processos de asilo. Ou seja, não possuem opções legais de emprego.
"Se houvesse trabalho, a gente não estaria aqui e nem venderia drogas. Sei de pessoas que vendiam, arrumaram empregos e não voltaram mais. Se eu achar um trabalho, também não volto", garante John.
No entanto, Dreifuss alerta: mesmo que opções de trabalho legal sejam encontradas para os migrantes, eles seriam substituídos no comércio de drogas por outras pessoas. "O tráfico não desaparecerá. A solução que oferece a esperança mais duradoura é regular legalmente o mercado."
O que pensam os visitantes?
Os usuários do parque ouvidos pela reportagem demonstraram pouco otimismo com a iniciativa da demarcação de áreas reservadas para o comércio de drogas.
"Ele [administrador do parque] quer mostrar que está pensando sobre o problema. Provavelmente sabe que não vai funcionar, mas acho que é para mostrar que está aqui, fazendo algo", diz Jana, moradora da região, que acrescentou nunca ter se sentido intimidada no parque.
"Não creio que os traficantes vão ficar lá", afirma a babá Paige Adams. "Se você é um traficante, a última coisa que vai querer para o seu negócio é ser exposto".
Adams reclama da atuação policial em Görlitzer Park. "A policia vem aqui bastante e não parece estar fazendo muito. Depois do meu incidente, registrei o caso e nada aconteceu. Nem fizeram um acompanhamento. De vez em quando, eles passam com a van no parque. É uma estratégia ineficiente."
A polícia, conta John, aborda os traficantes com frequência. "Temos que correr, mas também nos param só porque somos negros. Quando a polícia vem, saímos daqui porque se acharem qualquer coisa, mesmo que não seja sua, vão dizer que é sua."
Em uma dessas batidas policiais, John foi pego. Acabou multado em mais de 1 mil euros. "Como eu vou pagar isso? Tive que voltar aqui para vender drogas e pagar a multa."
As diversas emoções ligadas a políticas públicas de combate às drogas, argumenta Dreifuss, são legítimas, mas é preciso encarar o problema de forma realista. "Na Suíça, não foi fácil explicar ao público a necessidade de fornecer às pessoas que injetavam drogas agulhas e seringas limpas, criar salas de consumo supervisionadas e seguras, prescrever a heroína medicinal como tratamento dependentes", diz.
"Com a ajuda de pesquisadores, cientistas e policiais, foi possível convencer a população de que esse caminho era mais promissor do que o encarceramento. Podemos, em breve, mostrar que isso levou a ruas e parques mais seguros do que colocar o principal esforço do controle das drogas na repressão", completa Dreifuss.
*Nome fictício à pedido do entrevistado.
Fonte: BBC News