Cartuchos comprados por forças de segurança foram usados em pelo menos 23 ações criminosas que culminaram nas mortes de 83 pessoas em oito estados de 2010 a 2020. Levantamento feito pelo GLOBO em parceria com o Instituto Sou da Paz identificou a utilização de 145 lotes diferentes de munição adquirida por polícias ou pelas Forças Armadas nas ocorrências — que incluem sete chacinas, cinco grandes apreensões de munição com criminosos e até um roubo. Na maior parte dos episódios, os desvios nunca foram esclarecidos, e não houve punições aos agentes públicos envolvidos.

A pesquisa teve como base informações que integram processos e inquéritos sobre cartuchos coletados em cenas de crimes ou apreendidos em posse de criminosos. Grupos de extermínio e milícias atuaram em 15 dos crimes em que foi constatado o uso de munição desviada.

A análise dos dados revela que os projéteis desviados se “espalharam”: 13 lotes foram apreendidos em mais de uma ocorrência, e nove deles foram usados para cometer crimes em, pelo menos, dois estados.

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O lote apreendido em mais ocorrências foi o UZZ18, comprado em 2006 pela Polícia Federal (PF). Cartuchos deste tipo foram usados no homicídio da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes; numa guerra entre traficantes em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio; no roubo a uma agência dos Correios em Serra Branca, na Paraíba; e em duas chacinas com participação de policiais militares na Região Metropolitana de São Paulo entre 2012 e 2015 — na mais recente, 17 pessoas foram assassinadas.

'Noite do terror'

O lote BAY18, comprado pela PM de São Paulo em 2007, foi o segundo encontrado em mais ocorrências: cartuchos do tipo foram apreendidos nas duas chacinas de São Paulo, na guerra do tráfico em São Gonçalo e no episódio que ficou conhecido como Noite do Terror de Londrina, no Paraná, em que um grupo de extermínio formado por policiais matou 11 pessoas para retaliar a morte de um soldado da PM. Em comum, os dois lotes com mais ocorrências têm o número de cartuchos acima do usual: o UZZ18 é composto por 2,4 milhões de projéteis; já o BAY18, por 3,9 milhões — ambos muito maiores do que o “lote padrão” de dez mil cartuchos estabelecido pelo Exército, responsável pelo controle de munição no país.

O promotor Marcelo Oliveira, do Ministério Público de São Paulo, afirma que, quando investigou a chacina de Osasco, em 2015, a compra de lotes grandes inviabilizou o rastreamento da munição:

— Se o mesmo número de lote é colocado numa quantidade grande de cartuchos, o rastreamento é impossível. Em tese, a marcação existe para que seja possível refazer o caminho do lote e descobrir onde houve o desvio. No caso de lotes com mais de dois milhões de unidades, distribuídos por vários batalhões, isso é impossível.

Em abril do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro determinou, horas após a publicação, a revogação de três portarias do Exército que criavam regras para facilitar o rastreamento de armas e munição. Uma delas determinava que, “a cada 10 mil unidades comercializadas, deverá ser utilizado um único código de rastreabilidade, podendo ser marcadas frações menores até um mínimo de mil unidades”.

No levantamento, foram identificados cinco casos em que a marcação dos lotes ajudou a polícia a chegar aos autores dos crimes. Em comum, o fato de os conjuntos serem pequenos, distribuídos a poucos batalhões. Um deles é a execução da juíza Patrícia Acioli, em 2011. Os cartuchos do lote ADA43, encontrados no local do crime, só haviam sido distribuídos a dois quartéis — num deles, o 7º BPM, de São Gonçalo, eram lotados uma série de agentes que vinham sendo alvo de decisões da juíza por integrarem um grupo de extermínio. A investigação do crime também revelou o descontrole na gestão de munição do batalhão, o que possibilitou o desvio dos cartuchos: uma perícia descobriu que o controle era feito em um quadro-negro, com giz.

Do total de lotes levantados, foi possível identificar as 13 corporações — entre PF, Forças Armadas, secretarias de administração penitenciária, polícias militares e civis de cinco estados diferentes — que compraram 76 deles, segundo informações da Companhia Brasileira de Cartuchos, fornecedora da munição. Sobre o restante dos lotes que aparecem nos processos e inquéritos, é possível saber que pertenceram a forças de segurança em função das marcações, mas as investigações não identificaram o órgão específico.

Dezoito lotes foram adquiridos pela PM do Rio, origem da maior quantidade dos cartuchos em que o rastreamento foi possível. Esses projéteis foram apreendidos em cenas de sete crimes diferentes, todos no estado — em cinco deles, a investigação concluiu que milícias estavam por trás dos delitos.

Modalidades diversas

Há até um caso em que um policial militar foi morto pela milícia com munição comprada pela PM. Em abril de 2020, o soldado Luiz Carlos de Almeida da Silva Júnior foi baleado e morto num tiroteio entre milícias rivais que disputavam o controle de bairros de Belford Roxo, na Baixada Fluminense. No local do crime, a Polícia Civil apreendeu cartuchos de calibre .40 dos lotes AEO57, AYA77 e AYB23, comprados em 2010 e 2014 pela PM. Segundo Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, existem quatro modalidades diferentes de desvios de munição das forças de segurança para criminosos.

— Há o desvio de pequenas quantidades, em que agentes se beneficiam da falta de controle das corporações. Também existem esquemas de desvio em escala industrial, em que quem deveria controlar a munição é responsável pelos furtos. Outra modalidade é o desvio de munição de treino, por instrutores que atestam que consumiram munição que não foi usada. Por fim, há outro tipo de desvio ligado a treinamentos. Munição já usada que deveria ser descartada é retirada dos estandes das forças, recarregada e revendida — explica o especialista.

A Polícia Rodoviária Federal alegou sequer ter recebido “qualquer comunicação sobre apreensões de munições pertencentes a lotes comprados pela instituição em mãos de criminosos”. As PMs do Rio e do Distrito Federal, a Secretaria de Segurança do Ceará e a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio afirmaram que têm investigações em andamento para apurar os desvios, mas em nenhum dos casos há informação sobre a punição de agentes. A Secretaria de Segurança de São Paulo e a Polícia Civil do Rio não esclareceram se há investigações abertas. O Ministério da Justiça afirmou que o lote encontrado foi doado à PM do Rio em 2019. A Polícia Federal, o Exército, a Aeronáutica e a PM do Pará não responderam aos questionamentos.

Fonte: Agência O Globo

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