Os pés ficaram séculos sem mudanças, no processo de evolução, até que começamos a nos mover menos
Durante quase dois milhões de anos, os seres humanos evoluíram em sincronia com o meio ambiente. Mas há 250 anos chegou a Revolução Industrial e mudou tudo.
Embora a inovação e a tecnologia trazidas pelo fenômeno tenham gerado muitos benefícios para a humanidade, nossos corpos tiveram de pagar um alto custo físico nesse processo.
Os trabalhos que fazíamos, que antes envolviam tarefas manuais, realizadas ao ar livre, passaram a ser feitos a portas fechadas e a exigir que passássemos a maior parte do dia sentados e parados, fosse em uma fábrica, em um escritório ou dirigindo um veículo, por exemplo.
Isso teve um impacto enorme sobre nossos corpos, e um dos primeiros afetados foram nossos pés.
O professor na Universidade de Kent, Vybarr Cregan-Reid, autor dos livros Footnotes (Notas de Rodapé, em tradução livre) e Primate Change (Mudança Primata), levantou a questão na série "Changing World, Changing Bodies" (Mundo em Mudança, Corpos em Mudança), do Programa de rádio da BBC The Compass.
Segundo Cregan-Reid, há evidências científicas crescentes de que os pés são chave na evolução humana. Mas há pouca informação sobre como nossos antepassados se desenvolveram, porque existem poucos fósseis de pés e mãos.
É por isso que encontrar pegadas antigas é tão importante para os paleontólogos.
Perfeitos
Um das marcas mais antigas de pegada humana já identificadas data de um milhão e meio de anos atrás e foi encontrada no Quênia.
A marca ajudou a descobrir algo fascinante: que os pés de nossos antepassados permaneceram praticamente sem mudanças, enquanto o resto de seus corpos passava por grandes transformações.
Isto indica que durante muito tempo os nossos pés foram perfeitamente adequados ao nosso estilo de vida.
Enquanto nossos cérebros cresceram, nossos dentes diminuíram e nossos ossos aumentaram, o processo evolutivo não afetou demasiadamente os pés.
No entanto, isso mudou drasticamente nos últimos três séculos, quando nossos pés passaram por transformações sem precedentes: eles mudaram devido ao que fazemos – e deixamos de fazer - com eles.
Fracos, grandes e planos
Hoje, nossos pés são mais fracos, maiores e mais planos. E isso é uma má notícia não só para a saúde dos nossos pés, mas para o nosso corpo inteiro.
A perda de eficiência dos nossos pés se reflete em um fato surpreendente: quase 80% das pessoas que praticam corridas sofrem algum tipo de lesão todos os anos.
Foi essa estatística que primeiro levou Cregan-Reid a se interessar pelas extremidades inferiores do nosso corpo.
Ela decidiu consultar Hannah Rice, pesquisadora da área de esportes e saúde da Universidade de Exeter, no Reino Unido, especializada em entender como e por que machucamos tanto os nossos pés.
Segundo Rice, os machucados não se devem ao fato de os corredores forçarem demais os limites.
"Há dezenas de milhares de anos, as pessoas usavam (os pés) muito mais que agora, então não é um problema de uso excessivo. Talvez o problema seja que não os usamos o suficiente para acostumá-los a muito uso", explicou.
Rice deu como exemplo o corredor "clássico", que pratica o esporte três ou quatro vezes por semana e passa o restante do tempo sentado no escritório ou no sofá da casa.
Isso quer dizer: o que realmente nos machuca não é correr, mas o que fazemos quando não estamos correndo.
E os especialistas conseguiram estabelecer quando o problema começou: com a Revolução Industrial e o início de um estilo de vida mais sedentário. A partir daí, os pés começaram a se adaptar a nossa nova realidade. Rice resume a questão com a frase: "Use-o ou perca-o".
Superfícies duras e solas planas
Outras características da vida moderna pioraram ainda mais o quadro.
Por exemplo, as superfícies duras e planas sobre as quais costumamos caminhar diariamente. Ou o calçado de sola plana que costumamos usar para percorrer esses pisos.
Estes não permitem que os cerca de cem músculos e tendões que temos em cada pé se movam como costumavam fazer quando a vida era menos cômoda, os empregos exigiam movimento e as pessoas se deslocavam mais a pé.
O resultado é que a musculatura enfraqueceu, tornando nossos pés mais frágeis. Também perdemos a camada protetora de calos que nossos antepassados costumavam ter por passarem muito tempo descalços.
Mas foi somente a partir dos anos 70, quando correr virou moda, que a dimensão real do estado de nossos pés começou a se revelar, após cerca de duzentos anos de sedentarismo.
A loucura por corridas acrescentou um novo problema: a moda de usar tênis no dia a dia.
Talvez você ache que isso deveria ser uma boa notícia, já que muitos desses calçados, especialmente hoje em dia, são anunciados pelos supostos benefícios que oferecem aos pés.
No entanto, desde que começamos nosso caso de amor com os tênis, a incidência de pés chatos tem aumentado em muitas partes do mundo, especialmente no Ocidente.
Ter pés chatos é um problema porque a curvatura dá estabilidade ao pé. Também é essencial para poder caminhar, mas, sobretudo, para correr.
"Quando você corre, a curvatura do pé funciona como uma mola e, de fato, é uma das molas mais poderosas do corpo", explica o paleontólogo Dan Lieberman, da Universidade de Harvard. Ter pés chatos também pode afetar os joelhos e os quadris.
Como se todos esses desafios não fossem suficientes para nossos pobres pés, nos últimos anos a epidemia global de obesidade se somou a eles, uma vez que o sobrepeso aumenta a pressão sobre essa parte do corpo.
O que podemos fazer
Uma das coisas mais simples (e baratas) que podemos fazer para melhorar a saúde dos nossos pés é caminhar. Idealmente, descalços.
Segundo Rice, um estudo realizado em crianças na Índia comprovou que aqueles que não usavam sapatos ou sandálias tinham menos pés chatos.
Vybarr Cregan-Reid acredita que devemos "redescobrir nossos pés para aprender a usá-los novamente".
Pequenos hábitos como tirar os sapatos dentro de casa e tentar se mover mais podem ajudar.
O especialista diz, entretanto, que, o que quer que você faça, deve ser feito com calma.
"Descobrir os músculos esquecidos dos pés pode ser doloroso no começo, mas depois vai ser gratificante", afirma ele.
Fonte: BBC News